É imprescindível lembrar que esses modos de organização do discurso nem sempre aparecem “puros” no texto, ou seja, dificilmente encontraremos textos com características unicamente narrativas ou descritivas. Em um romance, por exemplo, vemos a imbricação entre a narração do enredo e a descrição do espaço.
Cada gênero textual, meu aluno, vai se valer, para a sua composição, de algumas sequências textuais padronizadas que levarão a um modo de organização, isto é, a uma estruturação do texto. Isso permite construir e reconhecer as sequências de alguns tipos textuais, tais como os citados acima: o narrativo, o descritivo, o injuntivo, o dialogal e o dissertativo.
A poesia, por exemplo, é estruturada em estrofes e versos, com rimas ou sem rimas; por sua vez, o artigo de opinião é estruturado em torno de um ponto de vista e da argumentação em sua defesa; e a tirinha é estruturada em enunciados curtos, apresentados em balões, para evidenciar a “fala” de personagens, destacando nessa composição a mistura entre texto verbal e não-verbal.
No nosso dia a dia, meu aluno, desenvolvemos uma capacidade de associação de inúmeros gêneros que se encontram ao nosso redor. Isso permite a interação de cada um deles da forma mais conveniente, à medida que nós vamos nos envolvendo nas diversas práticas sociais e comunicativas. A autora Ingedore Villaça Koch chama essa capacidade de associação de competência metagenérica.
É exatamente essa competência que permite a produção e a compreensão de gêneros textuais diversos, ou seja, ela orienta a produção de nossas práticas comunicativas e possibilita o entendimento sobre os gêneros textuais efetivamente produzidos.
NARRAÇÃO
Texto ou fragmento de texto que tem por fim relatar uma sequência de fatos ou ações. Ao contrário da descrição – onde os fatos ocorrem simultaneamente –, a narração sugere eventos que acontecem em sucessão. Compara-se a um filme.
Exemplo: “Os aimorés haviam reiniciado a luta, cada vez mais sequiosos de vingança. Os selvagens, não querendo que ninguém se salvasse, principalmente Pery, abateram uma árvore que era um ponto de comunicação praticável entre a residência de D. Antônio de Mariz e a cabana do índio.
Ao primeiro golpe do machado de pedra sobre o tronco, Pery estremeceu e ia despedaçar a cabeça do inimigo com a clavina; conteve-se, porém, e acabou de torcer uma corda com os filamentos de uma das palmeiras que serviam de esteio à sua cabana. A árvore, afinal, caiu e os aimorés, mais tranquilos, continuavam os preparativos para o combate final que contavam dar durante a madrugada” (José de Alencar).
Este fragmento de texto narra sequencialmente os fatos que se sucederam. Uma fotografia não indicaria todo o ocorrido. Haveria a necessidade de um filme para demonstrar a sucessão de acontecimentos: Pery estremeceu; depois foi despedaçar a cabeça do inimigo; posteriormente se conteve; finalmente, torceu uma corda.
DESCRIÇÃO
Texto ou fragmento de texto que tem por fim formar a imagem de um ser, de um objeto, de um lugar ou de uma situação em um determinado momento. É fundamental perceber que a descrição não indica uma sequência temporal. Pelo contrário, na descrição de uma situação, os fatos ocorrem simultaneamente, podendo-se, inclusive, inverter a ordem dos eventos. Compara-se a descrição à fotografia.
Exemplo: O professor tem aproximadamente quarenta anos, um metro e oitenta, noventa quilos, cabelos castanhos e ralos, barba espessa e usa óculos.
Enquanto o professor explicava a matéria, os alunos das primeiras fileiras prestavam atenção. Já os das fileiras intermediárias dormiam e os das fileiras do fundo jogavam bolinhas de papel uns nos outros.
Observe que, nos dois exemplos, procurou-se fazer uma descrição. No primeiro caso, de uma pessoa; no segundo, de uma situação. Repare que, neste, a ordem dos fatos poderia ser invertida, pois os eventos são concomitantes. “Enquanto o professor explicava a matéria, os alunos das fileiras do fundo jogavam bolinhas de papel uns nos outros. Já os das fileiras intermediárias dormiam e os das primeiras fileiras prestavam atenção”.
“A sala era pequena e de telha vã. Pelas paredes, velhos cromos de folhinhas, registros de santos, recortes de ilustrações de jornais baralhavam-se e subiam por elas até dous terços da altura. Ao lado de uma Nossa Senhora da Penha, havia um retrato de Vitor Emanuel – uma cabeça de mulher em posição de sonho – parecia olhar um São João Batista ao lado. No alto da porta que levava ao interior da casa, uma lamparina, numa cantoneira, enchia de fuligem a Conceição de louça” (Lima Barreto).
A intenção deste fragmento de texto é formar a imagem da sala, desde o seu tamanho até os elementos que a compõem.
INJUNÇÃO
No texto injuntivo, meu aluno, o autor tenta fazer com que o leitor tome atitudes a partir de uma sequência de comandos por meio do convencimento. O texto injuntivo geralmente apresenta ordem, pedido ou conselho. Por essa razão, há predominância de verbos no imperativo e a ordenação seriada das informações, especialmente sob a forma de orações coordenadas.
Exemplo 1:
Receita de pizza
1. Peneire a farinha e o sal em uma tigela grande. Adicione o fermento e misture.
2. Faça um buraco no centro dos ingredientes secos. Despeje a água e o azeite e mexa até formar uma massa mole.
3. Amasse a massa sobre uma superfície levemente enfarinhada por mais ou menos 10 minutos, até que ela fique lisa e elástica.
4. Coloque a massa em uma tigela untada e cubra com plástico transparente. Deixe-a em um local morno para crescer por mais ou menos 1 hora, até que ela tenha dobrado de tamanho.
5. Amasse novamente a massa. Coloque-a sobre uma base levemente enfarinhada e amasse por 2 a 3 minutos. Abra a massa como desejado e coloque-a em uma fôrma untada. A massa está pronta para a cobertura.
(http://www.muitomaisreceitas.com.br/receitas/tortas_paes_e_pizzas/massa_basica_para_pizza.html)
DIÁLOGO
No texto dialogal, é possível observar que o texto é constituído por no mínimo dois locutores, que estabelecem um intercâmbio verbal. Este tipo de texto é organizado de forma a reproduzir uma conversa da oralidade, pois conferem realismo ao diálogo realizado pelos personagens que participam do mesmo espaço e discutem sobre o mesmo tema. Este texto se difere da narração, pois o narrador, quando aparece, tem apenas a função de apresentar o diálogo que ocorre na primeira pessoa do singular.
Exemplo:
Ema prosseguia:
– E que música prefere o senhor?
– A música alemã, que é a que mais nos predispõe ao devaneio.
– Conhece os italianos?
– Ainda não; mas tenciono frequentá-los no ano que vem, quando for residir em Paris, para completar o meu curso de Direito.
(Trecho da obra Madame Bovary de Gustave Flaubert)
DISSERTAÇÃO
Texto que se caracteriza pela interpretação e análise da realidade por meio de conceitos abstratos. Difere-se aí da descrição e da narração, visto que nestes há a predominância de elementos concretos. Na dissertação, não há a preocupação com a formação da imagem de um objeto, de um ser ou de uma situação, tampouco indica-se a sequência de ações. Neste tipo de verbete, o esperado é uma tomada de posição do autor em relação a um assunto e os meios utilizados para a defesa dessa posição. Enfim, a dissertação pressupõe a indicação de uma opinião (tese) acerca do tema proposto e os recursos (argumentos) para apoiar a opinião.
O Brasil das cabeças desarrumadas
Elio Gaspari (O Globo)
O resultado do referendo fez um bem ao país. Instaurou o império das cabeças desarrumadas, e o Brasil precisa delas.
Uma pessoa de cabeça desarrumada é assim: defende a pena de morte e o ensino gratuito nas universidades públicas. É a favor do aborto e se diz católico. Votou Lula em 2002 e José Serra em 2004. É contra as cotas nas universidades e milita numa Ong de defesa da Mata Atlântica. Por desarrumada, essa cabeça pode pensar tudo ao contrário e não faz a menor diferença. A desarrumação determina e incentiva o debate. Opõe-se a um mundo de ideias ordenadas no qual a pessoa deve se preocupar em “pensar direito”, entendendo-se que sempre haverá alguém explicando o que vem a ser “pensar direito”.
Houve uma época em que a expressão “raciocinar em bloco” designava, com alguma ironia, inteligências ou culturas privilegiadas, sacerdotes do bem-pensar. Aceitando-se as virtudes do mestre, esperava-se sua opinião e ia-se atrás. Essa atitude tanto pode colocar uma pessoa na condição de discípulo de um grande pensador como pode embalá-la na treva da ignorância. O segundo caso ocorre com maior frequência.
As cabeças arrumadas brasileiras, atraídas pela construção de modelos intelectuais harmônicos, dão pouca atenção ao funcionamento da sociedade. Preferem evitar o assunto. Alguns exemplos.
O bem-pensar urbano do Rio de Janeiro legislou que é proibido construir apartamentos com menos de 30 metros quadrados. Coisa de gente muito bem educada. Faltou dizer onde vai morar uma família que não tem dinheiro para essa metragem. Na favela, por certo. A discussão dessa lei de incentivo à favelização está fora do debate urbano carioca.
O bem-pensar tributário estabeleceu que os serviços de telefonia devem ser taxados com mão-de-ferro, pois vai-se tomar dinheiro do andar de cima para custear investimentos que atenderão ao de baixo. Deu no seguinte: o patrão fala com Paris de graça pelo Skype e a empregada paga R$ 5 por um telefonema de dez minutos para Bangu. Um imposto destinado a buscar justiça produz injustiça, mas o tema está fora da agenda dos teletecas.
O bem-pensar diplomático levou Lula a propor uma cruzada mundial contra a fome. Fez isso em Genebra, Paris e Nova York. Passados dois anos, contou que gostaria de arrumar recursos para combater a desnutrição da África, aumentando as taxas de embarque nos aeroportos brasileiros. Falta dizer aos usuários do Galeão que eles pagam uma das taxas mais altas do mundo, o dobro do que se cobra no Aeroporto Kennedy.
Num caso mais farisaico, tome-se o exemplo da legislação penal brasileira. Bem pensada, faz inveja a um advogado sueco. São muitos os doutores que fazem palestras pelo mundo descrevendo essa joia de modernidade. Jamais um ministro da Justiça contará que as maravilhas são parolas. O que vale mesmo é a lei da massa. O bandido que entra na prisão passa a uma nova instância judicial, a de seus pares. Maltratou a mãe? Morre. Estupro? Se não morrer, sofre o que fez. Respeito, só para os estelionatários.
No Brasil das cabeças desarrumadas cada tema poderá ser discutido e avaliado isoladamente. Muitas opiniões resultarão contraditórias, mas é esse exercício do juízo individual que enriquece o debate público.
Harmonia e nexo podem ser desejáveis, mas é preferível conviver com pessoas de cabeça desarrumada cujas opiniões não formam um nexo final do que aturar gente que tem muito nexo mas não se responsabiliza pelas opiniões que dá.
Observe: o tópico frasal apresenta dois elementos a serem desenvolvidos: “Instaurou o império das cabeças desarrumadas, e o Brasil precisa delas”. O segundo parágrafo reapresenta apenas o primeiro tópico da tese abrangente (a tese particular): “Uma pessoa de cabeça desarrumada é assim”. A partir daí, o autor começa a utilizar o recurso da exemplificação para a defesa da pequena tese: “defende a pena de morte e o ensino gratuito nas universidades públicas. É a favor do aborto e se diz católico. Votou Lula em 2002 e José Serra em 2004. É contra as cotas nas universidades e milita numa ONG de defesa da Mata Atlântica”.
O sexto parágrafo, meu aluno, retoma a segunda parte do tópico frasal da introdução “e o Brasil precisa delas.”): “As cabeças arrumadas brasileiras, atraídas pela construção de modelos intelectuais harmônicos, dão pouca atenção ao funcionamento da sociedade. Preferem evitar o assunto”. Observe que o próprio autor do texto indica que a tese está se findando, pois ao fim deste parágrafo, ele escreve “alguns exemplos:”. Então, a partir daí até o antepenúltimo parágrafo, ocorrerão apenas exemplos para defender o fato de o Brasil precisar de cabeças desarrumadas. Os dois últimos parágrafos retomam o parágrafo introdutório sem a preocupação de oferecer outros argumentos, indicando tão-somente a conclusão de tudo o que se defendeu.
A nova política
(Merval Pereira)
O referendo sobre o desarmamento revelou, além da intensidade do sentimento negativo do eleitorado em relação à atuação do Poder Público, a vitalidade da chamada “sociedade global”, fenômeno que caracteriza as sociedades modernas que, com os meios tecnológicos de que dispõem hoje, podem existir independentemente das instituições políticas e do sistema de comunicação de massa, segundo análise do sociólogo Manuel Castells, da Universidade Southern Califórnia, nos Estados Unidos, um dos seus principais teóricos.
Segundo ele, a crise de legitimidade política, caracterizada por um distanciamento crescente entre os cidadãos e seus representantes, faz com que a sociedade civil tente preencher o “vazio de representação”, através de “mobilizações espontâneas usando sistemas autônomos de comunicação”.
Internet e comunicação sem fio, como os telefones celulares, “proveem um espaço público como instrumento de organização e meio de debate, diálogo e decisões coletivas”, ressalta Castells. A sociedade civil representada nesses debates, como aconteceu no referendo especialmente através da Internet, seria “um canal para a transformação do Estado”.
Miguel Darcy de Oliveira, fundador da Comunitas, uma organização da sociedade civil de interesse público para o fortalecimento da sociedade civil e a promoção do desenvolvimento social no Brasil, acha que o debate sobre desarmamento revelou dois fenômenos convergentes: o poder da Internet como ambiente para a formação de opiniões, e a capacidade do cidadão de pensar pela própria cabeça, confrontar pontos de vista, deliberar e tomar posição.
Para Miguel Darcy, a importância da Internet está em ser “o espaço por excelência para a livre expressão e debate. Cada um expõe seu ponto de vista, muitas vezes numa linguagem bem mais simples e direta do que a usada em textos escritos. Abre-se assim fórum de ideias aberto à contribuição de múltiplos participantes. Uma opinião não tem mais peso ou autoridade do que uma outra. Não há instância de controle do que pode ou não ser dito, do que é ou não politicamente correto. O que conta é o debate que se instala e se irradia com grande velocidade”. Ele ressalta que, durante a campanha do referendo, o movimento na Internet cresceu de maneira espontânea e inesperada.
“Amigos e colegas trocaram e-mails sobre os pontos de vista em discussão. Idéias foram confrontadas numa grande conversação que começou no ambiente virtual e se prolongou nos espaços de trabalho, na família, na escola. Gente que habitualmente pensava do mesmo modo se via agora defendendo posições conflitantes. Apelos emocionais e argumentos simplistas foram questionados. Cada um se viu diante do desafio de elaborar, sustentar e, eventualmente, modificar sua opinião”.
Apesar de a penetração da Internet ainda ser pequena no Brasil, sua capacidade de formação de opinião foi demonstrada durante a campanha do referendo, tornando-se um exemplo eloquente da emergência de um espaço público de debate e deliberação “que ninguém controla e que é altamente democrático”. Assim como Castells, Miguel Darcy de Oliveira classifica a participação de muitos neste campo argumentativo como “a melhor resposta dos cidadãos à crise da velha política e sua contribuição à invenção de uma democracia que se alicerça numa sociedade civil e numa opinião pública participante”.
O secretário municipal de Urbanismo do Rio, Alfredo Sirkis, diz que a vitória do “Não” no referendo não deve ser vista como da direita ou do conservadorismo. Ele diz que votou nulo, e classificou o referendo de “inócuo, demagógico, meramente midiático, um faz-de-conta, bem à moda brasileira, onde a vitória eventual do ‘Sim’ em nada mudaria a situação de violência fora do controle, nem contribuiria para o desarmamento em nada minimamente efetivo”.
Um dos maiores desafios da esquerda é a questão da segurança e da violência, admite Sirkis. “Se não soubermos tratar disso, não teremos futuro. Foi a lição aprendida por Clinton e Blair, que protagonizaram as duas únicas experiências bem-sucedidas à esquerda (nos respectivos contextos) que garantiram seu sucesso e reeleição”. Sem uma política clara em relação à segurança, Sirkis diz que a esquerda conseguirá “dentro de algum tempo, aí sim, empurrar para a direita todo esse imenso contingente que votou ‘Não’”.
Já o cientista político Bolívar Lamounier acha que o resultado do plebiscito certamente vai deixar muitas almas boas chocadas e quiçá desiludidas com o recurso à chamada “democracia direta”, muito usada principalmente por governos populistas, como o de Chávez, na Venezuela. Não é à toa que o Presidente Lula chegou a pensar em colocar seu governo a julgamento público junto com o referendo das armas. Seria um erro político grosseiro, mas revela o espírito de sua política. Em seu livro recentemente lançado, Da independência a Lula: dois séculos de política brasileira, Bolívar Lamounier critica a “democracia direta”.
Ele lembra que a utopia da democracia “direta” nutre-se de práticas vigentes num pequeno grupo de países, como nos Estados Unidos. Segundo Lamounier, de “direta” ela tem muito pouco : “no mais das vezes, trata-se de uma guerra entre lobbies, dissidências dos partidos e, não raro, de grupos racistas em geral muito bem financiados; ou então, visa amplificar a ressonância de propostas ou campanhas promovidas ao mesmo tempo através dos canais políticos normais”. Segundo ele, “a possibilidade de manipulação é inerente ao instrumento, pois a autoridade incumbida de propor os quesitos pode ficar muito aquém da neutralidade”.
O cientista político lembra que “desde que começaram a ser realizados, há cerca de dois séculos, plebiscitos e referendos foram quase sempre um jogo de cartas marcadas, com o objetivo de legitimar decisões autoritárias, ratificar ocupações de território alheio, e assim por diante”.
Observe, meu aluno, que este texto é dissertativo, pois revela a opinião do autor do texto logo em seu início: “O referendo sobre o desarmamento revelou, além da intensidade do sentimento negativo do eleitorado em relação à atuação do poder público, a vitalidade da chamada ‘sociedade global’”. A partir daí, são utilizados depoimentos de terceiros como recurso de argumentação. Logo após a vírgula em que se encerra a tese do autor, inicia-se sua defesa: “fenômeno que caracteriza as sociedades modernas que, com os meios tecnológicos de que dispõem hoje, podem existir independentemente das instituições políticas e do sistema de comunicação de massa, segundo análise do sociólogo Manuel Castells, da Universidade Southern Califórnia, nos Estados Unidos, um dos seus principais teóricos”.