Acompanhamos até aqui o desenvolvimento de algumas escolas literárias e artísticas como o Arcadismo e o Romantismo. Percebe-se que a produção da arte ocorre de forma situada, dialogando com o seu tempo histórico e com a cultura da época. Assim, continuaremos a compreender os períodos literários, pensando de forma contextualizada a história, a cultura, as produções artísticas e, finalmente, a expressão literária da época. Trataremos agora de um ponto de vista sobre a arte muito interessante, a saber: o Realismo.
INTRODUÇÃO
A sociedade “pós-romântica”, na metade do século XIX, foi tomada por transformações sociais no âmbito científico, político e econômico que modificaram a vida cotidiana, também alteraram a relação dos sujeitos com o meio social de que participavam, produzindo, assim, novas subjetividades.
Em meio à era da técnica promovida pelo avanço da ciência positivista1, a potencialização do pensamento cartesiano2(penso, logo existo), a emergência da Revolução Industrial3com o protagonismo das máquinas e do regime de exploração burguesa sobre o proletariado, monta-se um contexto legítimo para abertura de uma nova concepção de arte, desta vez negativa ao paradigma romântico.
A imaginação romântica em que o amor era concebido para além das condições materiais da realidade e o nacionalismo que enviesava os problemas da sociedade local para ligá-la ao universal, elegendo-a como “novo Éden”, não sustentavam meios de elaborar a realidade que, então, articulava-se.
Estejamos certos de que a arte existe, porque certamente a vida crua não basta, parafraseando o poeta Ferreira Gullar, e, dessa forma, novas concepções de arte também se formam na tentativa de elaborar o tempo, a sociedade, a subjetividade humana, os afetos humanos e tudo o que os circunda (amor, hipocrisia, inveja, traição etc.), coproduzindo, por assim dizer, o sistema social e político de então.
Notas:
1Positivismo – tradição filosófica que dá base às atividades científicas altamente racionalistas, divisórias, “dicotomizantes” da realidade complexa. Mesmo a conjuntura social contingente estaria baseada em leis naturais de organização e caberia à razão humana decodificá-las, tornando-as explícitas, Tem como representante mais expressivo Comte (1798-1857).
2Descartes (1596- 1650), filósofo que acreditava profundamente na capacidade da razão como fonte primeira da verdade, enquanto premissa científica. Logo, a atividade reflexiva deveria se opor à imaginação alucinada para se atingir a verdade dos objetos, dos fenômenos da natureza e da sociedade. Escreveu livros importantes como “O Discurso do Método”
3Revolução Industrial, processo político e econômico baseado na maquinaria industrial, ritmo veloz de produção de capital e, consequentemente, divisão de classes, na medida em que os donos usufruem da riqueza e do lucro e a classe operária e pobre encontra-se reduzida e objetificada como uma mera força produtiva.
Nesse sentindo, o Realismo surge como uma ironia à postura romântica:
“(…) realismo surgiu como uma palavra totalmente nova, apenas no século XIX; em francês, por volta de 1830, e em inglês, no vocabulário crítico, em 1856, sendo que, a partir de então, desenvolveu-se, em termos gerais, como um termo que descreve um método e uma postura em arte e literatura: primeiro uma excepcional acuidade na representação e depois um compromisso de descrever eventos reais, mostrando-os como existem de fato, sendo que aqui, em muitos casos, inclui-se uma intenção política.”
(PELEGRINI, 2007, p.139).
Para termos uma ideia de como o artista procede ao gesto da arte realista no âmbito do texto, observem-se duas sequências narrativas descritivas em torno de um perfil feminino para a personagem:
DESCRIÇÃO 1
“Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso (…). Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu…”
(ALENCAR, José de. Iracema, p. 16)
DESCRIÇÃO 2
Não podia tirar os olhos daquela criatura de catorze anos, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo.
(ASSIS, Machado de. 1994. p.20)
É visível que as duas sequências narrativas descritivas demarcam pontos de vista bastante específicos sobre o perfil feminino (uma selvagem idealizada do ponto de vista nacionalista e uma menina do mundo urbano na sociedade industrial) e que também evidenciam formas e estilos de operarem a descrição.
Podemos dizer que na descrição 1, o autor concebe o perfil feminino de forma excessivamente metafórica, baseado em elos que identificam Iracema entre elementos humanos e elementos da natureza, construindo, assim, uma descrição poética e ideal da personagem. Na descrição 2, por sua vez, o detalhamento exclui a adjetivação ou a metaforização excessiva para fornecer a substantivação da imagem, de forma mais sólida e representativa.
O que está em jogo, naturalmente, não é a representação como correspondência exata entre linguagem e mundo, pois, a linguagem, sabemos, modula e recria mundos e realidades. O escritor realista, na verdade, enfrenta a tentativa de observar e ficcionalizar os dados da realidade, as cenas, as interações, os costumes, os interesses públicos e privados com o intuito de promover uma reflexão sobre o que está para além da aparência social e, consequentemente, sobre a natureza humana.
PANORAMA HISTÓRICO BRASILEIRO
O Realismo, no Brasil, nasceu em consequência da crise criada com a decadência econômica açucareira, o crescimento do prestígio dos estados do sul e o descontentamento da classe burguesa em ascensão na época, o que facilitou o acolhimento dos ideais abolicionistas e republicanos. O movimento Republicano fundou em 1870 o Partido Republicano, que lutou para trocar o trabalho escravo pela mão de obra imigrante.
Nesse período, as idéias de Comte, Spencer, Darwin e Haeckel conquistaram os intelectuais brasileiros que se entregaram ao espírito científico, sobrepujando a concepção espiritualista do Romantismo. Todos se voltam para explicar o universo através da ciência, tendo como guias o positivismo, o darwinismo, o naturalismo e o cientificismo. O grande divulgador do movimento foi Tobias Barreto, ideólogo da Escola de Recife, admirador das ideias de Augusto Comte e Hipólito Taine.
O Realismo e o Naturalismo aqui se estabelecem com o aparecimento, em 1881, da obra realista Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e da naturalista O Mulato, de Aluísio Azevedo.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DO REALISMO
Para entendermos as características gerais da estética realista, observe atentamente o fragmento da obra Madame Bovary de Gustave Flaubert.
“Charles tinha boa saúde e um ótimo aspecto; a sua reputação estava definitivamente estabelecida. Os camponeses estimavam-no por não ser orgulhoso.
Acariciava as crianças, nunca entrava na taberna e, além disso, inspirava confiança pela sua moralidade. Acertava, sobretudo, com os catarros e as doenças de peito.
Tendo muito receio de matar os doentes, Charles, realmente, pouco mais receitava do que calmantes, de quando em quando um emético, um escalda-pés ou sanguessugas. Não é que tivesse medo da cirurgia; sangrava abundantemente as pessoas, como se fossem cavalos, e tinha um pulso de ferro para arrancar dentes.
Sentia-se, além disso, mais irritada com ele. Com a idade, Charles ia adquirindo certos hábitos grosseiros; à sobremesa entretinha-se a cortar as rolhas das garrafas vazias; depois de comer passava a língua sobre os dentes; quando comia a sopa, fazia barulho de cada vez que engolia e, como tivesse começado a engordar, os olhos, já de si pequenos, pareciam subir-lhe para a testa, empurrados pelas bochechas.
Emma, às vezes, metia-lhe para dentro do colete a orla vermelha das camisolas, compunha-lhe a gravata, ou punha de parte as luvas desbotadas que ele se dispunha ainda a usar; e não era, como pensava Charles, por causa dele; era por ela própria, por expansão do seu egoísmo, por irritação nervosa. Às vezes também lhe falava de alguma coisa que tivesse lido, como do trecho de um romance, de uma peça nova, ou de histórias curiosas da alta-roda que vinham no folhetim porque, afinal, Charles sempre era alguém, sempre com disposição para ouvir e pronto para dar a sua aprovação. Muita confidência fazia ela à cadelinha galga! E tê-las-ia feito até as achas do fogão e ao pêndulo do relógio.
No íntimo da sua alma, contudo, esperava um acontecimento. Como os marinheiros aflitos, percorria com os olhos desesperados a solidão da sua vida, procurando ao longe alguma vela branca nas brumas do horizonte. (…)”
O livro de Flaubert foi o marco da estética realista já que, antes da obra ser lançada, os romances traziam muita emotividade. No entanto, Madame Bovary apresenta uma temática objetiva: a traição de Emma Bovary. Por trazer à tona a questão do adultério, evidencia-se a imperfeições da sociedade burguesa. Além disso, o fragmento apresenta forte caráter descritivo, sendo este repleto de objetividade. A narrativa traz um narrador em 3ª pessoa que apenas observa cenas ao seu redor.
Todas essas características opunham-se fortemente às características da linguagem romântica, marcada pela subjetividade e pelo individualismo. O Realismo propôs a investigação do comportamento humano e denunciou, por meio da literatura, os problemas sociais, abandonando, assim, a visão idealizada do Romantismo.
A PRODUÇÃO REALISTA NACIONAL
No Brasil, a visão de muitos críticos apontou Machado de Assis como principal escritor realista, já que o autor era um grande crítico da sociedade de sua época, não idealizava o amor e criou personagens que se distanciavam da estética romântica. No entanto, conforme salientam alguns pesquisadores (entre eles, destaca-se o trabalho do professor Gustavo Bernardo Krause), os romances machadianos distanciam-se de algumas características do realismo. Sendo assim, é preciso analisar de forma mais profunda esse autor.
CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS DO ESTILO MACHADIANO
- O narrador estabelece francodiálogo com seu leitor
“Abane a cabeça leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível.”
(Dom Casmurro, Cap. XLV)
No excerto, percebe-se que o narrador cede espaço à presença do leitor presumido, incorporando-o à dinâmica romanesca em que os fatos narrativos acontecem.
- Construção de personagens metafísicos
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador personagem é um defunto autor, ou seja, a obra é contada por um morto. Tal construção distancia-se do ideal de narrador realista.
- Presença forte da ironia
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”
(Memórias póstumas de Brás Cubas)
A ironia é um método realista machadiano por excelência. Repare que, ao falar de seu afeto amoroso, concebe-o com um prazo de validade “quinze meses” e pagamento “onze contos de réis”.
Tal procedimento também orienta o leitor a desconfiar dos pensamentos e das intenções dos personagens. Assim, sinaliza para uma ordem moral, uma denúncia da hipocrisia, dos interesses, do desgaste das relações humanas, um certo pessimismo social.
- Romances com capítulos curtos
- Visão cética
- Narrativas em 1ª pessoa
- Uso de digressões